quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Sobre o Pancadão e os Rolezinhos







O Estado garantirá a todos o pleno exercício
 dos direitos culturais e acesso às fontes
 da cultura nacional, e apoiará 
e incentivará a valorização 
e a difusão das
 manifestações
 culturais.
Artigo 215, da Constituição Federal

Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.
Artigo 5º, inciso II, da Constituição Federal

É livre a locomoção no território nacional em tempo de paz,
 podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar,
 permanecer ou dele sair com seus bens.
Artigo 5º, inciso XV, da Constituição Federal

 Todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público,
 independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião
 anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido
 prévio aviso à autoridade competente.
Artigo 5º, inciso XVI, da Constituição Federal

Odeio o chamado "funk carioca". Gosto do funk de verdade de James Brown, de Parliament Funkadelic, de Stevie Wonder, de Hildon, de Cassiano, de Tim Maia, de Gerson King Combo.

O que se chama "funk" hoje em dia não foge muito do tal do "Miami Bass", que é a batida de fundo de quase todas as "músicas" e das letras pobres e apelativas que não exigem nenhum esforço de compreensão e, quase invariavelmente, ou colocam a mulher como simples objeto de exploração sexual ou vangloriam a bandidagem, ou os dois. Ruim também é o "funk ostentação", primo brasileiro do "rap ostentação" -- o lixo em que se transformou o rap estadunidense, que era música de protesto e afirmação da cultura negra e virou exibicionismo noveau riche apologético de um lifestyle materialista onde você é bom pelo o que tem (carro, mulheres de novo, correntes de ouro etc.). Se o original já é um lixo, imagine a cópia nacional em roupagem "funk".

Aí, veio o Prefeito Fernando Haddad e vetou o Projeto de Lei dos Vereadores Conte Lopes e Coronel Camilo que  visava proibir bailes "funk" em espaços públicos dizendo que "o funk é uma expressão legítima da cultura urbana jovem, não se conformando com o interesse público, à toda evidência, sua proibição de maneira indiscriminada nos logradouros públicos e espaços abertos". Que desserviço ao bom gosto, à educação musical, às crianças, à saúde, ao trânsito, ao sossego publico, senhor Prefeito; só que não

"Funk" é cultura sim, quer eu goste ou não. Posso dizer que é cultura de baixo nível, posso proibir a execução na minha casa, mas nem o Prefeito pode proibir uma manifestação cultural, nem o Governador , nem a Presidenta! As "Bachianas" de Villa-Lobos é tão manifestação cultural quanto o "Leke, Leke, Leke" -- que eu não sei quem fez. Uma manifestação não elimina a outra, dependendo de onde você está, do contexto. Quem só gosta de música erudita e só espinafra o que não curte, me desculpe, corre o risco de ser um "mala". 

Independente de eu gostar ou não gostar desse "funk" o certo é que uma parcela significativa  da juventude gosta e tem direito de usufruir do entretenimento que ele proporciona tal qual eu tenho o direito de ir à Virada Cultural e ver as minhas bandas de rock preferidas ou de ir ao parque do Ibirapuera assistir a um concerto de música erudita.

Não podemos confundir o veto à lei com uma permissividade com o barulho alto, ao consumo de drogas, ao congestionamento de veículos, à perturbação do descanso das pessoas e à bagunça geral na rua porque já existem leis que proíbem essas coisas. Não precisamos de mais leis para resolver esses problemas, precisamos de fiscalização e educação, para ficar no clichê. Aliás, para quem sente falta do império da lei (que há chegar ao coração do Pará), uma lei sancionada por Haddad neste ano, que também foi proposta pelo Coronel Camilo, proíbe a emissão de ruídos de aparelhos de som de carros estacionados.

Assim, é evidente que o espírito do projeto estava imbuído de preconceito, pois proíbia qualquer tipo de "baile funk" em espaços públicos, não dando margem para que a Prefeitura autorizasse um evento desse em nenhuma condição, até porque o projeto de lei dizia que a proibição era para qualquer horário.

Continuo não gostando do "funk carioca", mas o prefeito governa para todos e não só para os que têm o mesmo gosto que eu.

Outras medidas imbuídas de preconceitos são as liminares concedidas contra os "rolezinhos", que, ao meu ver, não constituem um movimento, mas sim um evento, no qual os jovens da periferia resolvem pelas redes sociais ir em grupos aos shopping centers para apenas e tão somente "tirarem um lazer", se divertirem em espaços abertos ao público.

"Nossa, mas eles vão em bando!" Pois é, a Constituição Federal lhes dá o direito de se reunirem em quaisquer locais abertos ao público.

"É, mas eles não compram nada!" Então, você pode "entrar só pra olhar", eles não?!

"Tá, só que eles espantam os clientes, que ficam com medo." Ahã, então os clientes não podem conviver com jovens, negros, pobres, de periferia. Como é que se chama isso mesmo? Ah, lembrei: preconceito -- para não dizer racismo.

Me parece, não tenho nenhuma comprovação disso, que o fenômeno "rolezinho" tem a ver com a ascensão social dos miseráveis ocorrida nos últimos dez anos no Brasil, que possibilitou o acesso a bens culturais e de consumo a um povo que antes não tinha condições para tanto. Por mais que os jovens da periferia não estejam dando o "rolezinho" para ir às compras, eles devem se sentir minimamente "empoderados", com um certo nível de autoestima, que ir ao shopping dos bacanas não seja mais uma coisa tão assustadora assim. Em que pese, talvez, lhes faltar coragem para irem sozinhos ou apenas com  alguns amigos a esses templos de consumo. Ir em grupos grandes dá mais coragem, o sujeito fica meio escondido na multidão, "é mair legal"! Além do que é natural do jovem desafiar o estabelecido e criar coisas novas.

Outra questão que o "rolezinho" escancara é a falta de alternativas de entretenimento e cultura para essa juventude na cidade. Convenhamos, existe coisa mais insípida, insossa, pausterizada, capitalista e esnobe que shopping center? Em outras palavras, existe coisa mais paulistana?

Vai daí que questiono o seguinte: a ascensão social ocorrida nos anos Lula/Dilma está sendo acompanhada por um aprimoramento da consciência de classe ou estamos apenas inserindo as pessoas no mercado como consumidores e não como cidadãos?

Os jovens estão procurando aquilo que a ideologia dominante diz que é bom e o bom é ir ao shopping ter tênis de marca, agregar valor no camarote, ter um carrão -- de preferência com um puta soundsystem para ouvir "funk" beijando a "popozuda". Só que, não se iludam, que a classe operária ainda não foi admitida no paraíso -- onde apenas estudantes da FEA/USP e que tais podem entrar impunemente para realizarem intervenções extraordinárias. Enquanto isso, o brado de Lemmy Kilmister continua retumbando: "Eat The Rich" e, pelo jeito, a burguesia dos shoppings não quer que exista amor em SP.